Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 20-22

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

PRIMEIRA PARTE

CAPÍTULO I: O DESÍGNIO DE AMOR DE DEUS A TODA A HUMANIDADE

I. O AGIR LIBERTADOR DE DEUS NA HISTÓRIA DE ISRAEL
a) A proximidade gratuita de Deus

20 Toda autêntica experiência religiosa, em todas as tradições culturais, conduz a uma intuição do Mistério que, não raro, chega a divisar alguns traços do rosto de Deus. Ele aparece, por um lado, como origem daquilo que é, como presença que garante aos homens, socialmente organizados, as condições básicas de vida, pondo à disposição os bens necessários; por outro lado, como medida do que deve ser, como presença que interpela o agir humano ― tanto no plano pessoal como no social ― sobre o uso dos mesmos bens nas relações com os outros homens. Em toda experiência religiosa, portanto, se revelam importantes quer a dimensão do dom e da gratuidade, que se percebe como subjacente à experiência que a pessoa humana faz do seu existir junto com os outros no mundo, quer as repercussões desta dimensão sobre a consciência do homem, que adverte ser interpelado a gerir de forma responsável e convival o dom recebido. Prova disso é o reconhecimento universal da regra de ouro, em que se exprime, no plano das relações humanas, a lei que inscrita por Deus no homem: « Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles »[Catecismo da Igreja Católica, 1789; 1970; 2510].

21Sobre o pano de fundo, compartilhado em vária medida, da experiência religiosa universal, emerge a Revelação que Deus faz progressivamente de Si próprio a Israel. Ela responde à busca humana do divino de modo inopinado e surpreendente, graças aos gestos históricos, pontuais e incisivos, nos quais se manifesta o amor de Deus pelo homem. Segundo o livro do Êxodo, o Senhor dirige a Moisés a seguinte palavra: «Eu vi, eu vi a aflição do meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa dos seus opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos. E desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo sair do Egito para uma terra fértil e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel» (Ex 3, 7-8). A proximidade gratuita de Deus ― à qual alude o Seu próprio Nome, que Ele revela a Moisés, «Eu sou aquele que sou» (cf. Ex 3, 14) ― manifesta-se na libertação da escravidão e na promessa, tornando-se ação histórica, na qual tem origem o processo de identificação coletiva do povo do Senhor, através da aquisição da liberdade e da terra que Deus lhe oferece em dom.

22À gratuidade do agir divino, historicamente eficaz, acompanha constantemente o compromisso da Aliança, proposto por Deus e assumido por Israel. No Monte Sinai a iniciativa de Deus se concretiza na aliança com o Seu povo, ao qual é dado o Decálogo dos mandamentos revelados pelo Senhor (cf. Ex 19-24). As «dez palavras» (Ex 34, 28; cf. Dt 4, 13; 10, 4) «exprimem as implicações da pertença a Deus, instituída pela Aliança. A existência moral é resposta à iniciativa amorosa do Senhor. É reconhecimento, homenagem a Deus e culto de ação de graças. É cooperação com o plano que Deus executa na história»[Catecismo da Igreja Católica, 2062].

Os dez mandamentos, que constituem um extraordinário caminho de vida indicam as condições mais seguras para uma existência liberta da escravidão do pecado, contêm uma expressão privilegiada da lei natural. Eles «ensinam-nos a verdadeira humanidade do homem. Iluminam os deveres essenciais e, portanto, indiretamente, os deveres fundamentais, inerentes à natureza da pessoa humana»[Catecismo da Igreja Católica, 2070]. Conotam a moral humana universal. Lembrados também por Jesus ao jovem rico do Evangelho (cf. Mt 19, 18), os dez mandamentos «constituem as regras primordiais de toda a vida social»[João Paulo II, Carta encicl. Veritatis splendor, 97].

Hoje isso quase não é lembrado, é mesmo démodé falar em moral e em valores universais. Contudo, estão inscritos no coração do ser humano, e cada homem e cada mulher pode conhecê-los e deve agir em conformidade com eles. Nós, cristãos (e também os judeus), não temos desculpa para não fazê-lo, pois nos foi dado a conhecer o próprio Deus, que nos interpela a agir em conformidade com aquilo para o que fomos criados: a perfeição (v. Mt 5,48). Não podemos concretizar essa perfeição sem Deus, pois seria usurpação: a perfeição é um atributo divino, e só com ele seremos perfeitos e chegaremos ao céu (v. Gn 11,1-9). Nesses tempos difíceis, façamos o discernimento, e não deixemos que Deus seja excluído da política, mas, ao contrário, seja a vontade divina que prevaleça, até mesmo sobre a nossa.

Pai nosso que estais nos céus,
Santificado seja o vosso nome,
Venha a nós o vosso Reino,
Seja feita a vossa vontade
Assim na terra, como no céu.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje.
Perdoai-nos as nossas ofensas
Assim como perdoamos a quem nos tem ofendido,
E não nos deixeis cair em tentação,
Mas livrai-nos do Mal. Amém!